segunda-feira, 1 de março de 2010

Nova ordem global

José Nelson Bessa Maia
Jornal O POVO, Fortaleza, 27 Fev 2010



Desde o fim da Guerra Fria, no início dos anos 90 do século XX, uma série de transformações vem ocorrendo no cenário mundial, alterando de forma rápida a configuração de poder econômico e político entre os estados-nação, com repercussões que se propagam nos âmbitos do comércio, segurança, meio ambiente e finanças, acelerando movimentos transnacionais, inserindo novos atores não-estatais e subestatais, gerando distintas formas de poder e impondo novos desafios à governança global. Nesse contexto, torna-se obsoleta a noção de uma linha divisória entre os países ricos e desenvolvidos do Norte e os países pobres e em desenvolvimento do Sul, que foi por muito tempo um conceito central entre cientistas sociais, analistas econômicos e formuladores de políticas. Essa divisória perdeu o sentido em meio ao dinâmico processo de globalização em curso que resultou em níveis inéditos de crescimento econômico e interdependência entre as nações, cujas disparidades levaram a um mundo muito mais complexo e diferenciado.

Na literatura de Relações Internacionais, os emergentes são países não-desenvolvidos que estão passando por rápidas mudanças estruturais (industrialização e melhoria no bem-estar) e institucionais e, portanto, em fase de transição para a condição de nações desenvolvidas ou avançadas. Os exemplos de mercados emergentes incluem os grandes países continentais, vários outros do Sudeste asiático, Europa Oriental, e em partes da África e da América Latina. Na verdade, países emergentes são um termo cunhado, em 1981, pelo economista Antoine Van Agtmael, do Banco Mundial, para denominar países com economias de mercado que mantinham crescimento econômico sustentado, com reformas modernizantes, o que lhes possibilitaria chegar ao status de nações desenvolvidas. Nos últimos anos, surgiram novos termos e critérios para descrever os maiores países em desenvolvimento, como a sigla BRIC, criada, em 2001, pelo economista Jim O´Neill do Banco Goldman Sachs, para designar os quatro países: Brasil, Rússia, Índia e China, os quais, conforme projeções demográficas e econômicas, poderiam em conjunto se tornar a maior força na economia mundial antes de 2050. Estes países são heterogêneos e com interesses díspares, mas estão desempenhando um papel crescente e promissor na economia e na política mundial.

É difícil definir uma lista dos países emergentes devido à heterogeneidade dos países que estão registrando alto desempenho econômico. Uma das listas mais utilizadas é a do Banco Morgan Stanley que inclui como emergentes 28 países. No entanto, a mais significativa é a lista dos 11 emergentes que compõem o chamado Grupo dos 20 (G-20), um fórum de cooperação e de consulta sobre assuntos financeiros internacionais, que abrange os principais países do mundo no campo da economia, desenvolvidos e emergentes. Esses países são África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Brasil, China, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, México, Rússia e Turquia. Juntos, esses 11 países emergentes abrangem 33% da superfície e 51% da população terrestre, gerando um quinto do PIB mundial, 25% das exportações, bem como 48% do estoque de reservas cambiais do planeta. O peso econômico e ampla representação desses países emergentes no G-20 dão-lhe um elevado grau de legitimidade e influência sobre a gestão da economia e o sistema financeiro globais.

As economias emergentes têm registrado na última década crescimento econômico sustentado sem precedentes, que os capacita a complementar ou mesmo substituir os países avançados como forças motrizes da economia mundial. Esses países, beneficiários da globalização seriam, pois, um grupo vasto e difuso de países - em tamanho, geografia, cultura e política - que teriam aprendido a se integrar de forma crescente na economia global, e também a influenciá-la, para catalisar o seu próprio desenvolvimento. Desse modo, as potências tradicionais precisam acomodar a ascensão das economias emergentes - em particular, China, Índia e Brasil - reformando a ordem internacional vigente. Os países avançados continuariam sendo protagonistas globais, mas à medida que aumenta o poder econômico dos países emergentes, estes demandariam um papel de maior destaque nas decisões internacionais.

No rescaldo da crise econômica e financeira atual, os EUA, a Europa e o Japão ficaram seriamente abalados e endividados, o que vem a acelerar a passagem do centro de gravidade da economia internacional para um mundo policêntrico. As implicações disso são duplas. Por um lado, o Ocidente tem de perceber que para avançar a sua agenda de bens públicos globais, particularmente em termos de combate às mudanças climáticas, a pobreza mundial, o crime organizado e o terrorismo terá de envolver os países emergentes como parceiros iguais. No entanto, ao fazê-lo, deve proporcionar a esses países uma voz nas instituições mundiais que seja proporcional ao seu peso econômico relativo. Mesmo a contragosto, o Ocidente está instado a aceitar essa mudança radical nas relações internacionais. Os países emergentes, por outro lado, precisarão agir de forma responsável no sistema internacional e para assumir responsabilidades de partes interessadas no sistema de estados-nação e blocos, terão de renunciar a medidas oportunistas que permitem ganhos de curto prazo em troca de perspectivas de ganhos globais.

Se esse dilema for resolvido com sucesso, o mundo poderá caminhar para um século de paz, estabilidade e prosperidade, onde todas as regiões e países tenham possibilidades de êxito, sem que nenhum fique alijado dos frutos do desenvolvimento. Todavia, para que isso seja atingido existem pelo menos três principais desafios a enfrentar: i) garantir um acordo mundial sobre mudanças climáticas (ora em discussão na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática em Copenhagen), a fim de evitar o risco de sobrevivência da humanidade no futuro; ii) firmar um novo acordo sobre as regras do jogo no comércio e nas finanças, de modo a manter um sistema econômico multilateral aberto e eficiente, o que exigirá mais transparência e regulação mais eficaz; e iii) assegurar um reequilíbrio pacífico do poder econômico ao nível global, com a redistribuição do poder político pela recomposição das representações nos principais organismos internacionais, a exemplo do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU), o FMI e o Banco Mundial.

Em suma, pode-se concluir que se torna indispensável uma reforma profunda nas instituições e regimes internacionais para que possam refletir mais fielmente e de forma efetiva a nova configuração de compartilhamento de poder entre países avançados e emergentes no seio do sistema internacional. A julgar pela reunião dos países do G-20 em Pittsburgh (em setembro passado) para discutir como viabilizar a recuperação sustentável das economias e as estratégias de saída dos instrumentos acionados contra a crise financeira internacional em curso, esse processo de incorporação dos países emergentes no processo decisório mundial estaria dando seus primeiros passos.

>José Nelson Bessa Maia Economista, mestre em Economia, ex-assessor internacional do Governo do Ceará (1995-2006) e doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB). E-mail: nbessa@unb.br


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