sexta-feira, 17 de junho de 2011

“Monetização” da Pobreza.

José Lemos*

O programa de combate à miséria recentemente lançado pelo Governo Federal comete um “pecado original” ao reduzir os miseráveis àqueles cuja renda monetária é de no máximo setenta reais (R$70,00) por mês.
Ao caracterizar os miseráveis desta forma, o Governo corre um grande risco de cometer injustiças sociais irreparáveis. Afinal qual a diferença que faz ter aquela renda mensal ou auferir R$75,00 ou mesmo R$100,00 por mês? É certo que qualquer programa de intervenção com um objetivo desse precisa estabelecer “cortes”, tendo em vista que os recursos são limitados. Mas isso não precisa induzir a um “reducionismo” de um conceito tão complexo e holístico como é o de pobreza.
A literatura que trata do tema mostra que esta forma de tratar este conceito (monetizando-o apenas) é a mais equivocada de todas as existentes, apesar do seu aparente pragmatismo. Afinal fica muito singelo e prático estabelecer quem vai participar e quem não vai participar do programa com base neste marco definidor.
Mas o pragmatismo e a simplicidade não devem nortear um programa que deveria injetar um mínimo de dignidade a um contingente de pessoas infelizmente ainda muito elevado neste Brasil ainda deitado em berço esplendido.
Nas áreas rurais, em geral, e naquelas das regiões Norte e Nordeste, em particular, concentram-se, em termos relativos, os maiores bolsões de miseráveis do Brasil. Parte dessa gente tem renda monetária que é inferior ao limite estabelecido pelo governo e pode não ser miserável. Isto porque nas Unidades Agrícolas Familiares (UAF), onde sobrevivem milhões de brasileiros, produzem-se dois tipos de rendas. A renda monetária e a renda “não monetária”. Como renda “não monetária” identifica-se aquela parte da produção que é destinada ao consumo da família. Se não fosse produzida na UAF teria que ser comprada. A renda monetária é obtida através do que é produzido e vendido pelos agricultores aos preços que recebem na época em que comercializam. Esses preços serão menores que aqueles de mercado que a família pagará se não produzir. Por isso, mesmo que a renda monetária seja inferior ao valor estabelecido pelo governo, se puder produzir a subsistência a família viverá melhor do que aquela que vier para as cidades e tiver mais de R$70,00 diários por pessoa.
Alem daquelas, as UAF têm características importantes que as diferem de outras atividades. Elas são a um só tempo: unidades de produção, unidades de consumo e unidades de “afeição”. Unidades de produção quando destinam parte do que produzem para vender. Unidades de consumo, quando parte do que produzem vai para a subsistência da família. Unidades de “afeição” porque os agricultores familiares desenvolvem afinidades com a sua terra, com ambiente em que vivem e que os fazem ficar “apegados” a ele, de tal sorte que resistem à possibilidade de abandoná-lo na primeira condição adversa. As famílias ficarão por ali “enquanto a vaquinha tiver coro e o osso e puder com o chocalho pendurado no pescoço”.
Nas áreas rurais de extrema pobreza, ou de miséria, haverá um predomínio da renda “não monetária”. Quase nada do que é produzido é vendido. Não circula, ou circula pouco dinheiro. Além disso, estão presentes todos os tipos de carências. Não tem água tratada, não tem local adequado para os dejetos humanos das famílias, as taxas de analfabetismo são altas em todas as faixas etárias e a escolaridade média é baixa.
Criar programa para combater pobreza desconhecendo essas especificidades tem chances muito elevadas de não atingir os objetivos. Sim porque, a pobreza rural será uma determinante da pobreza urbana, que é muito mais cara de ser mitigada.
Sem condições mínimas de permanência nas áreas rurais as famílias, mesmo tendo aquele sentimento de “apego”, um dia se defrontarão com “o último pau de arara” e emigrarão. Nas cidades terão que alugar a força de trabalho para ao menos se alimentarem. Não conseguirão. Incrementarão os já precários serviços sociais existentes nesses locais. Morarão em favelas. Ficarão dependentes de assistencialismo.
Portanto, a mitigação de pobreza deve começar disponibilizando terras em quantidade e qualidade para agricultores familiares que tenham tradição com as atividades. O programa precisa adentrar nas raízes estruturais do problema, não apenas nas suas evidencias conjunturais. Um programa de combate à miséria não poderá prescindir de recursos para viabilizar assistência técnica gratuita, acesso a credito com juros diferenciados, pesquisa aplicada e, sobretudo, educação nas UAF. De outra forma, continuaremos observando a mera transferência de rendas. Isso não resolverá.


*Professor Associado na UFC


*

Nenhum comentário:

Postar um comentário