sexta-feira, 27 de abril de 2012

Mas não devia


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ter outra vista que não seja as janelas ao redor
E porque não tem vista. Logo se acostuma a não olhar para fora
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir as cortinas
E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender mais cedo a luz
E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora
A tomar café correndo porque está atrasado
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem
A comer sanduíche porque não dá para almoçar
A sair do trabalho porque já é noite
A cochilar no ônibus porque está cansado
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobra a guerra
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz
Aceita ler todo dia da guerra, dos números de longa duração
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone
Hoje não posso ir
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar
E a ganhar menos do que precisa e a fazer filas para pagar
E a pagar mais do que as coisas velem
E a saber que cada vez pagará mais
E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro
Para ter com que pagar nas filas que cobra
A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes
A abrir a revista e ver os anúncios
A ligar a televisão e a ver comerciais
A ir ao cinema e engolir publicidade
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos
A gente se acostuma à poluição
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro
À luz artificial de ligeiro tremor
Ao choque que os olhos levam na luz natural
Às bactérias da água potável
À contaminação da água do mar
À lenta morte dos rios
Se acostuma a não ouvir o passarinho
A não ter galo de madrugada
A temer a hidrofobia dos cães
A não colher fruta no pé
A não ter sequer uma planta
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer
Em doses pequenas, tentando não perceber
Vai se afastando de uma dor aqui, de um ressentimento ali
Uma revolta acolá
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo
Se o trabalho está duro, a gente se consola no fim da semana
E no fim da semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
E ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado
A gente se acostuma para se ralar na aspereza, para preservar a pele
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
Da faca e da baioneta, para poupar o peito
A gente se acostuma para poupar a vida aos poucos
Se gasta, o que gasta, de tanto acostumar se perde de si mesma
EU SEI , MAS NÂO DEVIA.
Clarice Lispector


*

Nenhum comentário:

Postar um comentário